Espetáculo “Mulheres de Nínive” estreia no Teatro Hermilo Borba Filho
Quantas mulheres incríveis foram invisibilizadas ao longo da história da humanidade, mesmo tendo elas contribuído sobremaneira para todas as nossas celebradas conquistas? Quantas delas foram aprisionadas em ciclos repetitivos de dor, violência, medo e culpa, tudo isso como instrumentos de apagamento e controle social? E principalmente: como romper esses ciclos que parecem intermináveis e moldam, até hoje, o pensar e as construções hegemônicas sobre suas respectivas existências em sociedades ao redor do mundo? Foi justamente para artística e filosoficamente descobrir essas respostas em si mesma – compreendendo que essa é uma busca potencialmente transversal – e contando com a contribuição de várias mulheres igualmente incríveis e uma pesquisa aprofundada, que surge o espetáculo Mulheres de Nínive, idealizado e encenado pela atriz, apresentadora e produtora cultural, Nínive Caldas, e dirigido pela atriz, psicóloga e diretora teatral, Hilda Torres.
Dito isso, é importante ressaltar que a obra não tem a expectativa de se apresentar como um relato de dor e sofrimento feminino. Muito pelo contrário, apesar de partir do pressuposto de que sem história e a compreensão dela não há construção de identidade, o trabalho busca ressignificar as possibilidades do “existir mulher”. Isso, fora das “caixas” e dos estigmas gerados pelas crenças limitantes tão introjetadas até mesmo nelas próprias.
Apesar do nome do espetáculo ser praticamente homônimo ao da atriz, a peça está longe de ser uma experiência meramente auto-centrada. É, sim, uma busca que parte de vivências pessoais, mas em diálogo e desconstrução da estrutura patriarcal na qual estamos todas e todos inseridos. A proposta surge a partir da relação de Nínive com Maria Madalena, personagem que interpretou na Paixão de Cristo, em Fazenda Nova, no maior teatro ao ar livre do mundo. Em seu processo de pesquisa cênica, percebeu que Madalena era mais uma mulher que teve sua história apagada, reforçando a lógica machista, misógina e preconceituosa que ela e tantas outras mulheres, além da própria Nínive, foram inseridas sumariamente pela estrutura. Assim, o trabalho foi tomando forma e encontrando sua essência por meio do atravessamento da história não contada de Maria Madalena, que habita e se borra com as de todas as mulheres.
Mas por que Mulheres de Nínive? Além da relação evidente com a atriz e idealizadora do espetáculo, Nínive também foi uma cidade histórica, famosa tanto nos ciclos bíblicos, quanto pagãos. Foi a capital da Assíria, na antiga Mesopotâmia, berço dos famosos jardins suspensos da Babilônia, onde hoje localiza-se o Iraque. Na bíblia, a cidade a qual Deus mandou o profeta Jonas para salvar o povo de seus pecados, mas por se recusar, foi engolido por um grande peixe. Já na Cabala, é símbolo de força remetida ao início dos tempos, bem Antes de Cristo. Nesse contexto, conta-se que a primeira mulher a se destacar foi Semíramis, que passou a ser reconhecida como uma grande guerreira e arqueira, que lutava ao lado dos homens e se destacava nas caçadas. Ela herdou a tradição da rainha de Sabá, guardiã do sagrado feminino ensinados por Eva. O nome espiritual dessas mulheres aprendizes de Eva era Eufame que quer dizer castiçal da potência. Elas guardavam os mistérios do sagrado feminino, tinham o domínio das fases da lua, eram guardiãs do fogo e conhecedoras dos oráculos.
Contudo, foi também em Nínive onde um dos episódios mais violentos de apagamento feminino que se tem conhecimento aconteceu, em um verdadeiro massacre físico e cultural. Ao se tornar um grande centro místico que reunia pessoas até mesmo de grandes distâncias, dirigido e administrado pelas Eufames, passou-se a perseguir e posteriormente matar essas mulheres, gerando um grande massacre ocorrido na cidade. Poucas delas sobreviveram e, essas, fugiram para tentar salvar suas vidas e famílias.
Não por acaso, as histórias das Madalenas, Nínives, Semíramis e tantas outras mulheres se misturam nesse enredo que é completamente atemporal. Não existe nele uma personagem principal, são várias mulheres que habitam uma mesma em cena. Mulheres que colocaram e colocam seus corpos como instrumento para abrir portas e arar terrenos para as do futuro.
A proposta de encenação do monólogo se consolida através da formatação de sua dramaturgia, composta pelos processos de pesquisa supracitados e textos criados pela própria atriz, costurados aos de outros autores e autoras da contemporaneidade. Passada a pesquisa cênica, o processo foi direcionado a um mergulho no corpo, nas imagens, nas formas, partindo sempre da presença e do sentir. Assim surgiu o cenário, que traz uma grande saia no centro do palco, representando o mar, os oceanos e as águas que nos ligam. Na obra, tudo é trabalhado com muita simbologia, a partir da ressonância entre a encenação e a atuação, ou seja, entre a atriz e a diretora. A partir daí, a equipe foi ganhando corpo com a preparação corporal de Lili Rocha, que traz uma intensa percepção corporal a partir do sentir e respirar; a trilha sonora composta também a partir das vivências do processo pelas musicistas e compositoras Nana Milet e Ana Paula Marinho; o desenho de luz desenvolvido pela iluminadora Natalie Revorêdo; e o figurino criado pela estilista Xuruca Pacheco, o stylist Marcelo Mendes, a atriz Fabiana Pirro e a diretora, Hilda Torres.
Mulheres de Nínive se apresenta como uma obra ousada, que traça um importante diálogo entre épocas na expectativa de pavimentar um futuro diferente para a livre existência das mulheres. A mulher que questiona, que se junta a outras, que busca seus próprios caminhos e com isso vai pavimentando sua própria trajetória.
O espetáculo estréia no dia 02 de outubro e segue com outras duas apresentações no dia seguintes 03/10, como parte da programação do Festival Cumplicidades, no Teatro Hermilo Borba Filho.