Peça “Në rope” retorna em curta temporada no Teatro Barreto Júnior
Num momento pós-pandêmico em que o planeta entra na fase de “fervura global”, diante de ações humanas que geram (ou deveriam gerar) preocupações sobre a sobrevivência da própria espécie humana, a arte volta a ser uma importante forma de alerta. E o teatro ritualístico-cerimonial ganha uma força sem precedentes.
Ativista dos direitos humanos e pelo clima, a líder indígena Guarani-Kaiowá Valdelice Verón (citada no livro “Teatro e os povos indígenas”) ensina que “ser artista é fazer a arte falar.”
Portanto, é com espírito de urgência que, após fechar a programação do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) em 2023, a peça “Në rope – A fertilidade da nossa origem” retorna ao Teatro Barreto Júnior, no Recife, nos dias 25, 26 e 27 de agosto.
O espetáculo dos artistas e jornalistas Jr. Aguiar e André Zahar convida o espectador a ir em busca das raízes mais antigas da resistência de um povo, explorando temas de espiritualidade ancestral, e traz à tona debates contemporâneos sobre demarcações de territórios indígenas, destruição do meio ambiente e decolonialismo.
“Os povos originários da América são guardiões de um conhecimento extremamente sofisticado. Existem e lutam não para proteger a floresta, mas porque são floresta. É a eles que sempre pedimos sempre permissão para este trabalho de pesquisa e criação”, ressalta Zahar.
Ayahuasca
Inspirada no pensamento de autores indígenas, a obra narra uma jornada pela espiritualidade ancestral e os dilemas políticos da América Latina. A curta temporada ocorre no mesmo palco da estreia durante o 29° Festival Janeiro de Grandes Espetáculos (JGE), quando a peça obteve indicações aos prêmios de melhor espetáculo e de melhor ator para Jr. Aguiar, que também dirige o espetáculo.
Aguiar cita diversas fontes para a dramaturgia e a encenação, com destaque para o teatro primitivo com raízes no teatro ritualístico-cerimonial, conhecido hoje como teatro xamânico. Além disso, cita o teatro essencial de Denise Stoklos e o teatro político de Brecht.
“Outro aspecto que considero significativo é a forma como nosso teatro aborda um tema tão relevante nos dias de hoje, que é a Ayahuasca. Essa medicina originária da nossa floresta amazônica representa um patrimônio latino-americano, e sua popularidade tem se espalhado pelo mundo. Em nossa peça, utilizamos a Ayahuasca de maneira simbólica, prestando uma homenagem a essa tradição”, explica Aguiar, que é guardião da Casa de Xamanismo Centro da Terra, em Aldeia..
Autores indígenas
A partir do encontro entre um jornalista independente e um pajé que teve o filho assassinado, “Në rope” denuncia a política oficial de extermínio dos povos originários latino-americanos, ao mesmo tempo que reverencia o xamanismo ameríndio. Durante as apresentações, o músico Breu da Selva cuida da música ao vivo com instrumentos nativos que completam a atmosfera ritualística de cada apresentação.
Com roteiro e atuação de André Zahar e Jr. Aguiar, o espetáculo dividido em três atos se funda numa pesquisa iniciada com as obras do xamã yanomami Davi Kopenawa, do escritor Ailton Krenak e outros pensadores indígenas.
O título da peça foi extraído do livro “A queda do céu”, em que, a partir da entrevista com Kopenawa, “në rope” é traduzido como o “princípio da fertilidade da floresta” pelo antropólogo Bruce Albert. Ao longo do processo e de criação, Aguiar e Zahar fizeram entrevistas com pensadores e lideranças como o escritor Kaká Werá Jecupé, o cacique Marcos Xukuru, o cineasta Hugo Fulni-ô e o líder espiritual e artista Nawa Siã Huni Kuin.
América Latina
Foram revisitados ainda episódios como a Guerra dos Bárbaros no Sertão do Nordeste, o Massacre de Haximu, o bombardeio aos Waimiri Atroaris na construção da Transamazônica, além de crimes mais recentes envolvendo os mesmos atores políticos. A ascensão de Evo Morales na presidência da Bolívia e a luta dos zapatistas mexicanos, por outro lado, trouxeram novas perspectivas e significados ao tema do espetáculo. Paralelamente, o espetáculo integra-se ao movimento neoxamânico, que busca a expansão da consciência e o resgate de uma prática espiritual ancestral indissociável da natureza.
O processo de criação foi atravessado ainda pelos martírios do indigenista Bruno Pereira e do repórter Dom Phillips no Vale do Javari. Essa tragédia elevou a importância da defesa do jornalismo que é feita na peça. Por sinal, Zahar e Aguiar, além de artistas, são eles próprios jornalistas profissionais.
Sinopse
Na peça, André Zahar interpreta Euclides Passos, profissional enviado para escrever sobre o assassinato de uma jovem liderança indígena. Jr. Aguiar, por sua vez, se divide entre os papéis do editor de uma mídia alternativa, o xamã curandeiro e o advogado dos garimpeiros acusados pelo crime.
Para Aguiar, “Në rope” é um grito contra a barbárie e o genocídio atroz historicamente perpetuado nas entranhas do Estado brasileiro”. “Há uma urgência, um alerta que estamos vivenciando na luta e defesa dos povos originários. O Brasil está ressignificando o lugar destes povos, cujas tradições guardam uma riqueza inestimável, na construção de nossa identidade nacional e, principalmente, na construção de nossa herança humana como povo latino-americano. Mas o país também guarda na memória de sua colonização o sangue inocente destes povos massacrados, escravizados e discriminados pelo poder opressor que aqui se instaurou com as bênçãos da igreja e dos impérios europeus”, afirma.